Outro dia, numa conversa com uma pessoa pela qual tenho enorme apreço ele me disse: “o maior problema do Brasil é a corrupção”. Inicialmente, dada à efetividade da, digamos, ideológica propaganda difundida de forma maciça e a quatro cantos pelo sistema capitalista e pela mídia por ele sustentada, somos tentados a crer na assertiva como verdade absoluta sem questioná-la, por um segundo sequer. Ocorre, entretanto, como no dito popular, “o buraco é mais em baixo”. Que fique claro, desde logo, que nossa intenção não é perfumar ou glorificar a corrupção. Ela é, sem sombra de dúvida, uma mazela perversa que traz consequências terríveis para a sociedade brasileira, quase que exclusivamente para a parcela mais pobre, que sofre na pele as omissões do estado que dela decorrem.
O Brasil é sem dúvida um país com grande número de corruptos, sim, é verdade e ela foi posta à mostra num movimento jurídico/político que começou com a Operação Lava Jato, cujo mérito foi trazer à tona práticas criminosas longevas e que quase a totalidade dos partidos políticos do Brasil estava metida até o pescoço, com exceção, salvo engano, do PSOL, PSTU e PCO. Os grandes partidos, todos eles foram citados, sem exceção. Lamentavelmente, o remédio da lava Jato foi em dose alta demais, a operação talvez tenha extrapolado no tempo e o que era remédio passou a ser veneno. Houve uma quebradeira das grandes empresas da engenharia nacional e com ela milhares de postos de trabalho viraram pó, tributos deixaram de ser recolhidos e divisas para o Brasil deixaram de entrar, neste caso porque as grandes empresas nacionais também eram grandes no exterior. Um detalhe crucial não foi observado: havia que se punir as pessoas, mas sem destruir as empresas. A vaidade extrema dos procuradores responsáveis pela condução dos procedimentos fez da Operação tanto palco como espelho, ora para se exibirem publicamente, sempre de forma superlativa, ora para admirarem a si mesmos, como foi o caso do procurador Dalagnol, que chegou ao ponto de enviar mensagens a si mesmo (isso mesmo, ele se comunicava com ele mesmo), possivelmente a forma encontrada de materializar suas reflexões com seu alter ego e lustrar seu exacerbado narcisismo.
Voltando ao nosso tema corrupção, caso o Brasil não tivesse 6.329 favelas, que impõem mais de 11 milhões de pessoas a condições extremamente precárias de moradia, onde se inclui, entre outras precariedades, a precariedade na educação, a falta absoluta de água tratada e zero de saneamento, estaria ela num patamar hierarquicamente superior, mas não é o caso. Com efeito, vale lembrar que só no Rio de Janeiro existem 763 favelas, ou seja, 22% da população da Cidade Maravilhosa, segundo dados do IBGE obtidos no censo de 2010. Destaque-se que o censo do IBGE é a tomografia do estado brasileiro, pois nele os tumores são detectados. Lamentavelmente o atual governo deu ao censo tratamento de segunda classe. Sem fugir do tema, mas apenas com o intuito de inserir um dado a mais no contexto, o ministro de economia Paulo Guedes disse em entrevista sobre o censo, à Globo News, que “O Brasil é um país pobre e faz 360 perguntas. Custa muito caro e tem muita coisa do nosso ponto de vista (do governo federal) que não é tão importante”. Pois bem, além de tentar desqualificar um valioso instrumento que visualiza com precisão o estado brasileiro, que por sua vez assegura a adoção de políticas públicas adequadas e justas, também mostrou desconhecer o formato do censo. O censo brasileiro tem 150 questões. Errou o ministro na forma e no conteúdo. Mas isso não é à toa, claro.
Além das favelas, que nesta hierarquia já coloca a corrupção em segundo lugar, há, também, o grave problema da saúde pública, que a empurra para o terceiro lugar. Se considerarmos a capacidade de entrega que os entes federativos têm do bem entendido com saúde, direito fundamental inserto na Constituição, a capacidade instalada de equipamentos para atendimento das pessoas pobres e da classe média, que se encontra numa descendente de empobrecimento, não dá conta de uma demanda que cresce a cada dia. Neste sentido, segundo estudos realizados, neste momento de plena transição demográfica brasileira, motivada pelo acelerado crescimento em razão do declínio da mortalidade e taxa de fecundidade horizontalizada em patamares altos, entre 1999 e 2009, a população cresceu em mais 27,5 milhões de habitantes com redução de 26,7% dos leitos e 947 mil internações com distorções na distribuição por clínicas.
No município do Rio de Janeiro, segundo levantamento realizado pela Comissão de Saúde da Câmara dos Vereadores, em matéria publicada no G1, mostrou que, em um ano, a capacidade de atendimento da rede de saúde da família do Rio caiu 17%. A cobertura desta modalidade de atendimento na cidade, segundo o estudo, caiu de 70% para 53%. Na Rocinha, maior favela da cidade do Rio de Janeiro, com cem mil habitantes, segundo o censo das favelas realizado pelo governo do estado, houve redução no número de profissionais que atendem os moradores nas três clínicas da família existentes.
Não bastassem as mazelas da precariedade de moradia e saúde, há o gravíssimo problema da violência, tema que, devido à grandeza e complexidade, trataremos num outro momento.
Apenas considerando esses três problemas a corrupção se situaria em quarto lugar na hierarquia dos males que assolam a sociedade brasileira. Ora, por que então há uma tendência em ascender a corrupção ao primeiro lugar das mazelas nacionais? Tal qual a religião, que tem um papel de relevada importância para o estado no controle das massas, a massificada informação de que a corrupção é o mal maior do Estado cria uma cortina de fumaça para outros problemas, e permite avanços de uma agenda normalmente contrária aos interesses do grosso da população mais pobre.
A informação, geralmente apresentada com todos os requintes da psicologia aplicada ao marketing, com imagens, cores, vozes e expressões faciais dos apresentadores cumprem eficazmente o papel de inserir a corrupção no topo da “cadeia alimentar”. Incutida no subconsciente das pessoas, a mensagem se propaga a ponto de cegar e ensurdecer as pessoas para as grandes mazelas e deixar o caminho livre para, a pretexto do combate à corrupção, a implantação da agenda liberal e derrubada dos direitos da classe trabalhadora.
Sedimentada a “verdade”, propício o ambiente para deposição de uma presidente eleita sob o frágil argumento legal de cometimento de crime de responsabilidade. A questão era política, convenhamos.
Deposto o governo, aprovou-se a reforma trabalhista que fragilizou ao limite máximo as relações de trabalho, derrubou conquista que levaram décadas e décadas para serem conquistadas pelos trabalhadores, sem prejuízo de amputar as pernas do único instrumento de luta e representatividade dos trabalhadores: os sindicatos. A única forma de financiamento dessas entidades foi simplesmente extirpada. Sem dinheiro, sem sindicatos; sem sindicatos, sem voz e sem direitos.
Vencida a etapa da reforma trabalhista, cujo objetivo era de criar um modelo econômico todo voltado para o capital e habilmente conduzida pelo presidente da câmara Rodrigo Maia, avançou-se em direção à reforma previdenciária, que embora combatida ao limite da exaustão pelos representantes dos trabalhadores na câmara e no senado, por associações de trabalhadores e sindicatos, inclua-se o sindicato dos auditores fiscais da receita federal, SINSFISCO, e a associação dos magistrados da justiça do trabalho, ANAMATRA, a reforma foi aprovada e sonho da aposentadoria para os mais pobres passou a ser praticamente inalcançável, tendo em vista ser o Brasil um país com enorme nível de informalidade nas relações de trabalho, o que dificulta comprovação das contribuições mínimas necessárias para aposentadoria.
Mesmo aprovada a reforma, ainda assim o tema corrupção deveria continuar no radar do establishment, pois a agenda liberal necessitava avançar ainda mais e os holofotes se voltaram para as reformas administrativa (leia-se corte de benefícios e perseguição aos empregados e servidores públicos), tributária e política.
No curso do processo de avanço havia um evento político da maior importância: as eleições majoritárias para a presidência da república, da câmara dos deputados e do senado. O candidato representante das classes populares surfava imbatível nas pesquisas e, para a garantia do sucesso da agenda liberal, deveria ser batido a qualquer custo. A Operação Lava Jato foi um valioso instrumento nessa tarefa, onde, inclusive, além da cobertura maciça da mídia sobre os procuradores, das prisões espetaculares da polícia federal, surgiu um juiz federal de Curitiba que serviu aos desígnios do establishment e logo alçado à condição de herói nacional. Portanto, tarefa cumprida, a marcha do liberalismo estava madura para seguir seu rumo. Ressalte-se que tempos depois a atuação do juiz, a essa altura a serviço do governo que ajudara a eleger, teve sua atuação questionada pela imprensa sob o forte argumento da parcialidade nos julgamentos, maior pecado que pode ser cometido pelo poder judiciário.
Outro problema extremamente grave que assola o cotidiano da sociedade brasileira é a violência (inclusive a policial), a qual, pela grandeza e complexidade, será objeto de artigo independente. No entanto, segundo nossa hierarquia, já empurra para um patamar ainda mais abaixo o tema corrupção.
O diabo da corrupção é feio, sim, mas a depender do poder de turno é mais feio do que é pintado..
Adm Reginaldo Oliveira é Conselheiro do CRA-RJ e Diretor do SINAERJ
Lava Jato atingiu membros de 33 partidos; duas siglas não foram implicadas
https://istoe.com.br/183856_IBGE+6+DA+POPULACAO+BRASILEIRA+MORA+EM+FAVELAS/
https://pt.wikipedia.org/wiki/Favelas_na_cidade_do_Rio_de_Janeiro
https://www.conjur.com.br/2017-out-09/juizes-ministros-discutem-nao-aplicar-reforma-trabalhista
https://brasil.elpais.com/brasil/2019/05/13/politica/1557776028_131882.html